Como podemos nos despedir de um ente querido que falece, quando há questões mal resolvidas dentro dessa relação?
- psicovanessadealmeida
- 17 de jul. de 2024
- 3 min de leitura
Em outubro do ano passado perdi meu pai. Foi uma das perdas mais dolorosas que tive na vida. Minha relação com ele ao longo da minha existência não foi das melhores, embora tivéssemos bastante semelhanças.
Tá aí: nem sempre as similaridades são boas para as relações.
Ele faleceu em decorrência do progresso rápido da doença de Alzheimer e de sua condição pulmonar que a vida toda o afetava de maneira extremamente agressiva.
Meu pai foi um homem muito rígido, pouco afetivo, arrogante, por vezes, egoísta, ansioso. Calma, tem lado bom😉 trabalhador excepcional, honesto, íntegro, engraçado (quando pegava ele nos dias bons), aquele pai que não deixava faltar nada em casa.
Nossas diferenças se apresentavam através das similaridades que nos uniam: éramos muito rígidos nos posicionamentos diante da vida: sobre trabalho, dinheiro, maneira de tratar as pessoas dentro da família e fora dela. Ele mais fechado, eu mais aberta! Além de sermos teimosos, criteriosos, os chamados “cabeças-duras” da família.
Ao longo da minha vida sentia revolta de ter tido um pai tão arrogante, pouco afetuoso e pouco apoiador. Foram anos de terapia pra conseguir sustentar o meu lugar de filha e compreender a história de origem dele para eu poder criar o sentimento de compaixão por ele.
E, acreditem, isso aconteceu;):)
Consegui ao longo do tempo separar os papeis de homem e pai, fundamental pra gente ter paz interior e desgrudar dos ranços que temos em torno das nossas figuras paternas e maternas.
Como pai, ele falhou, muito! Mas quem de nós é perfeito? Só ele sabe o quanto sofreu também em torno de suas figuras parentais. Quanto ao que eu considero que tenha faltado, comecei a me nutrir daquilo que sentia falta: busquei ser meu apoio, minha proteção e fonte de afeto próprios. Parei de choramingar feito uma criança em busca de um pai idealizado e cuidei dessa parte minha (muito machucada), através de um EU adulto nutrido dessas faltas.
O caminho foi um desafio, mas possível!
Dessa forma, mais fortalecida, com o passar do tempo, ele foi adoecendo e ficando cada vez pior. Pude vivenciar momentos que nunca imaginaria ao lado dele em momentos difíceis: quando internado, impossibilitado de falar, levei um alfabeto onde ele podia apontar as letras e formar frases. Nesse dia, ele me manda um “eu te amo”. Calma: saiu uma lágrima aqui.
Quando estava institucionalizado numa casa de cuidados intensivos 24 horas, devido ao seu quadro de saúde, as conversas eram doídas, mas eu sempre prestava muita atenção ao toque das mãos dele nas minhas. Conseguia sentir o afeto pelo toque. Nada de palavras, mas era pelo toque, pelo fazer pelo outro que ele demonstrava que amava alguém.
O último dia que consegui vê-lo lúcido, foi no dia dos pais do ano passado. Depois disso, ele ficou cada vez pior, dormia cada vez mais (era a morte se aproximando...).
Não houve despedida, mas um toque nos pés, na última visita que fiz a ele antes vir a falecer.
Ter a oportunidade de criar uma história, um sentido diferente diante de uma relação que pode ser perturbadora em alguns momentos, fez todo sentido para mim, pra eu poder me despedir do meu pai em paz. Sem aquele sentimento de que a pessoa está em dívida comigo, sabe?
Assim, eu pude me despedir. Vivi boa parte da minha vida tendo um pai presente de corpo, mas distante de alma. Consegui virar essa página e construir com ele o possível de nós, enquanto sobrava tempo.
Na despedida para enterrá-lo, bati palmas em reverência ao aprendizado, às dores e alegrias também dessa relação. Descobri ainda mais que mesmo diante das diferenças, eu o admirava.
Não sei se você terá a oportunidade que eu tive de mudar o significado da história com alguém importante pra você ainda em vida.
Mas se não tiver, despeça desse alguém oferecendo os seus melhores pensamentos em torno da relação que você teve e que foi possível.
Faça uma lista dos aprendizados vivenciados ao lado desse alguém, formule uma carta contando sobre a história dessa relação, sobre os pontos altos e baixos e finalize contando sobre o gostaria de ter dito e não houve oportunidade.
Além disso, lembre-se que ninguém é perfeito, que a despedida pode ser feita mesmo à distância com o melhor que puder extrair desse relacionamento.
Espero que essa reflexão ajude. Busque ajuda quando perceber que não consegue passar por essa perda sozinha(o).
Abraço, procês!
Vanessa de Almeida
Psicóloga clínica e Psicoterapeuta de Casal e Indivíduos
Instagram: @psicologavanessadealmeida
Comments